quinta-feira, janeiro 10, 2008

* O Passado não é para ser esquecido

O Passado, livro do argentino Alan Pauls, não é para ser esquecido. O livro narra a história de Rímini, que ao terminar um relacionamento de 12 anos com Sofia, tenta reconstruir sua vida. Mas ela se torna uma sobra, que o acompanha, e pode estar a qualquer tempo em todos os lugares. Ele vai morar com uma jovem modelo, Vera, que é atropelada ao vê-lo numa rua com a ex-esposa; casa-se com uma ex-colega de faculdade, Carmem, com quem tem um filho, mas o relacionamento termina de forma abrupta, após o filho deles ser raptado por Sofia. Rímini se degrada, mas é salvo pelo treinador físico do pai; na sua nova vida se relaciona com uma aluna, e ao ser preso, após o fim de mais um relacionamento, é resgatado por Sofia. Ela aparece e desaparece da sua vida ao longo dos anos. Mas mesmo distante, suas cartas e sua presença, nos símbolos, são constantes.
O livro é sensacional por diversos motivos: um deles por tratar uma história de amor como um fluxo constante. Rímini não quer mais Sofia, mas não sabe viver sem ela, ou não consegue viver sem ela. Ela tenta cobrar as dívidas de amor, que nunca poderão ser pagas. Quer que continuem amigos, que se telefonem, que se vejam. Mas Rímini quer esquecer. E a única coisa que ele consegue esquecer são as línguas estrangeiras que ele fala. Fatal para sua vida profissional de tradutor. O Passado continua.
Pauls inventa um pintor, Riltse. Criador da Sick Art, ele é algumas vezes elo entre Rímini e sua sombra, Sofia. Os dois apaixonados pelos quadros bizarros do pintor, se encontram na sua arte. Assim, Rímini percebe que nunca conseguirá se livrar de presença de Sofia.
Considerado um dos melhores autores vivos da América Latina, Pauls tem um pouco de Cortázar e Proust. Ele aniquila o tempo, sem tirar sua violência. Rímini amadurece, mas Sofia continua lá. Da mesma forma, Sofia continua a esperar por Rímini com o passar do tempo. A caixa que ela guarda com mais de 1500 fotos são provas vivas de um relacionamento que não existe mais, um cadáver que não quer ser enterrado. Rímini, não quer as fotos, não quer Sofia, não quer se lembrar do relacionamento, mas O Passado está ali, presente, não se deixa esquecer.
Tão atual, numa época de relacionamentos fugazes, das “filas” que andam freneticamente, dos namoros e casamentos descartáveis, O Passado não nos deixa esquecer do outro, daquele que sempre é considerado a parte mais fraca no relacionamento, que sofre mais com o final, que não quer esquecer, que não quer deixar acabar. Num mundo tão pouco enraizado, o final de um relacionamento duradouro pode representar o término de laços considerados sólidos, do início de um processo de solidão, e de depressão. Não dá para esquecer O Passado, por que ele está presente, ele está no nosso dia-a-dia, como Sofia na vida de Rímini. Na busca de uma vida menos ordinária, e de relacionamentos e pessoas não ordinários, não dá para deixar O Passado para trás. Como, se ao deixarmos O Passado tivéssemos a garantia, no futuro, de repetir todas as vilanias que cometemos com outros, ou ainda vê-las repetidas contra nós mesmos. Como no poema de Fernando Pessoa, cantado por Maria Bethânia, O Passado não nos deixa transformarmo-nos em gente vulgar. “Quanto a mim o amor passou/Eu só lhe peço que não faça como gente vulgar/E não me volte a cara quando passa por si/Nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor/Fiquemos um perante o outro/Como dois conhecidos desde a infância/Que se amaram um pouco quando meninos/Embora na vida adulta sigam outras afeições/Conserva-nos, caminho da alma, a memória de seu amor antigo e inútil”.
Não dá para esquecer O Passado, por que ele é a nossa única esperança no futuro, pois esquecê-lo significa revivê-lo, cometer todos os erros anteriores, repeti-lo infindavelmente, como se uma só vez não bastasse (einmal ist kein mal). Assim, Sofia tenta cessar seu sofrimento relembrando Rímini, na esperança de que ele volte. Rímini tenta esquecer Sofia, pois acha que aniquilar O Passado seria a única forma de viver diferente, de reconstruir o presente. Lembrá-la teria sido mais fácil. Mas como na vida teria não existe, Rímini segue o caminho mais difícil, o que nos permite ler no romance de Pauls uma verdadeira história de amor, sem início, meio e fim. Mas com início, meio, fins, e reviravoltas.
O livro inspirou o filme homônimo, dirigido pelo também argentino Héctor Babenco, com Gael Garcia Bernal no papel de Rímini. A não ser por ser linear, a narrativa do filme, não foge quase nada a do livro de Pauls. O tom sombrio, o tempo quase sempre nublado, dá o tom da tensão vivida por Rímini que a qualquer momento pode topar com o morto (o seu relacionamento), ou com a morta-viva (Sofia). A imagem de Sofia esperando Rímini na entrada de um museu para ver uma exposição de Riltse, num dia de tempestade que alaga quase toda Buenos Aires mostra o desespero dela em retomar O Passado. A calma de Rímini ao vê-la ilhada pela televisão transparece a sua ânsia de esquecê-lo.
Vi o filme e depois li o livro, e senti-me muitas vezes, tanto no cinema, nas duas vezes em que assisti, quanto nos momentos de leitura, Rímini e Sofia. O Passado que se quer esquecer é o mesmo que não se deixa esquecer. Entre o esforço de esquecimento, e a necessidade de (re)lembrarmos fica o presente, que a todo instante muda, e muda também a visão que temos do passado, e nos deixa claro que O passado é algo que temos que aprender a conviver com ele. Se temos que conviver com ele, o melhor é não esquecê-lo.


2 comentários:

Anônimo disse...

A cena dela na porta do museu, de capa amarela, enquanto o mundo desaba é memorável! =D

Ademais, é um bom filme.

Receio que não lerei o livro. Detesto ler o livro depois de ter visto o filme; até porque, ler é construir imagens.

Abraços

Unknown disse...

filme fantástico e resenha tb..dorei