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Aquela quinta-feira pareceu ser a mais bonita em muito tempo, para Carlos, o céu estava azul e límpido, como depois de um dia de tempestade. Ivan nunca tinha sentido nada como naquele dia. Eles haviam se encontrado no antigo prédio da Universidade do Brasil, que hoje abriga o Instituto de Filosofia e Ciências Sócias. Um prédio pomposo, de quatro andares e pé direito alto, fachada de pedra, e ar aristocrático, trazido da época em que abrigava a Escola Politécnica. Contraditoriamente, o prédio olhava majestosamente para a praça em frente, cheia de mendigos, cachorros abandonados, fezes, montanhas de papel e papelão, carrocinhas com todo o tipo de tralha, um cheiro fétido insuportável. Carlos chegou primeiro e entrou no prédio para se abrigar da terrível cena do mundo que se expunha na praça. Ivan chegou ávido por Carlos, e entrou no prédio procurando-o. Viu-o sentado num banco de plástico, que balançava para um lado e para o outro, equilibrando-se sobre o próprio peso e as pernas tortas. O enorme calor no interior do pátio obrigava todos a buscar a sombra, o Sol, apesar de proporcionar um dia lindo, estava inclemente. Os rapazes resolveram ir para algum lugar onde tivesse ar condicionado. Sem falar nada, como se se comunicassem apenas por telepatia, saíram pela rua sem direção. Eles estavam em sintonia perfeita, e poderiam dizer tudo com os olhos. Um sabia o tempo todo o que o outro queria. E isso ao mesmo tempo em que os inquietava, também era motivo de felicidade. Não tinham um endereço certo, queriam estar um com o outro. O Centro Cultural Banco do Brasil seria um destino certo, não fosse a necessidade deles de não encontrar com ninguém. Ivan os levou ao Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, que tem um lounge com poltronas brancas, e um ar condicionado potente que baixa a temperatura para algo em torno de 21º C. Um oásis próximo ao Largo da Carioca. Os rapazes se esgueiraram entre camelos, passantes, pedintes. Eles pareciam correr, tão rápido se locomoviam. Esperavam apenas por algum momento feliz, porque não existia felicidade para os dois. Quando entraram no Centro Cultural, foram diretamente para o lounge, onde havia uma exposição sobre cinema. No centro da grande área, ladeada por janelas, paredes brancas cobertas com papel que imitava uma biblioteca, e um café num dos cantos, haviam montado no seu centro uma mini-sala de cinema, com projetor, que exibia um curta, e um sofá para dois. Os rapazes andaram pelo labirinto que envolvia a micro-sala de exibição, e entraram na penumbra. Tinham vontade de se abraçar, seus corpos se chamavam, mas não se permitiram. Ficaram lá por um tempo indizível, como se fosse todo tempo do mundo, mas pode não ter durando mais do que 5 minutos. Eles se olhavam com sorriso nos olhos, sentaram-se num sofá grande, entraram novamente no cinema, dessa vez, sem graça, como se fossem cometer algum crime. Sentiam-se felizes somente com a presença um do outro, mas não disseram isso, não demonstraram nada em palavras ou gestos. Imaginavam que não precisavam, pois o outro deveria saber, e deveria sentir o que cada um sentia. De repente, logo que saíram pela terceira vez da sala de cinema, Ivan disse que tinha que ir para casa, como se algo fosse se partir, como se fosse a ultima coisa que tivesse que fazer em sua vida. Seu rosto era só contrariedade, e levantou-se num ímpeto, em direção a saída, repetindo, com a voz embargada e a cabeça abaixada, como se procurasse algo perdido no chão. “Cara, tenho que ir pra casa. Eu vou pra casa, cara. Eu tenho que ir”. Carlos tentou negociar, e consegui que fossem tomar um suco. Ele pediu goiaba, e Ivan jaca. Ele queria experimentar coisas novas! Foi somente na lanchonete, de volta ao calor, ao barulho, a confusão que eles conversaram sobre eles mesmos. Inicialmente, Ivan disse não ter tempo, e sorveu o suco rapidamente, para poder livrar-se da enxurrada de palavras que acho que viriam em forma de explosão. Mas Carlos não disse muito, apenas ressaltou que desde que eles haviam se conhecido ele não queria apenas ser amigo de Ivan. “Além disso”, falou Carlos, olhando fixamente nos olhos de Ivan, “você não pode ser indiferente a mim, como tentou ser. Eu não quero somente a tua amizade, mas não sei o que você quer de mim”. Ivan sorriu, e meneou a cabeça com quem diz não, ele não queria ouvir nada. Mas Carlos continuou. “Ou você gosta, ou você não gosta. Mas indiferença, nunca! Comigo sempre tem sido assim, e quando não, faço com que seja”. Ivan tentou se levantar, como se quisesse demonstrar o quanto não queria aquela conversa, mas Carlos segurou-lhe o braço, e continuou a cuspir-lhe as palavras, ainda que de forma delicada. “Ivan, eu não quero ser seu amigo. Não é esse tipo de relação que eu busco com você. Existem no mundo muitas pessoas ordinárias, e eu não sinto que você esteja dentre elas. Por isso, quero que você deixe o sentimento que tem ai dentro extrapolar, ou então, se vá. Prefiro mesmo que se vá. Assim eu sofro uma vez só”. Ivan então, se dirigindo assustado, para a porta da lanchonete, como se o mundo fosse acabar com a tempestade de se anunciava nas nuvens escuras e espessas que via no céu, disse: “eu tenho mesmo que ir. Além disso, vai chover muito. Por quê não podemos ser aquilo que fomos lá dentro? Por quê não podemos ser o que temos sido até agora?” Os dois saíram sob a chuva. Ivan ia à frente, estava apreensivo, mas sentia-se muito feliz. Carlos tinha se esvaziado, não conseguiu falar o que queria, nem falou como queria, sentia o peso do tempo, e toda a sua violência. Como se uma porta se fechasse sem que ele pudesse passar e tivesse ficado preso. Ouvia claramente uma voz que lhe dizia, “o mundo é assim, não é um lugar para felicidade, deixe passar, o que não pode mudar”. Mas ele não podia se conformar, queria se revoltar. Carlos deixou Ivan no seu ponto de ônibus. Ivan não pode perceber se o seu rosto estava molhado por lágrimas ou pelos pingos da chuva. Cada um seguiu seu caminho.